quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Ione saldanha








Saldanha, Ione (1919 - 2001)


Biografia

Ione Saldanha (Alegrete RS 1919 - Rio de Janeiro RJ 2001). Pintora, escultora e desenhista. Realiza seus primeiros estudos no Rio de Janeiro, no ateliê do pintor Pedro Luiz Correia de Araújo (1874 - 1955), em 1948. Entra em contato com os artistas Arpad Szenes (1897 - 1985) e Vieira da Silva (1908 - 1992). Viaja para a Europa em 1951 e estuda a técnica de afresco em Paris, na Académie Julian, e em Florença, Itália. Inicialmente produz obras figurativas, como cenas cotidianas e retratos, e pintura de casarios, em que enfatiza a geometria. Posteriormente, sua produção adquire um caráter abstrato. No fim da década de 1960, passa a utilizar novos suportes, abandonando a superfície bidimensional, e pinta sobre ripas, carretéis (bobinas de madeira para cabos elétricos) e bambus. Em 1969, recebe o prêmio de viagem ao exterior no 7º Resumo de Arte do Jornal do Brasil, e vai para os Estados Unidos e Europa. Participa de várias edições da Bienal Internacional de São Paulo, com prêmio aquisição em 1967, e sala especial em 1975 e 1979. Apresenta a mostra Resumo de 45 Anos de Pintura, nas galerias A. M. Niemeyer, Paulo Klabin e Saramenha, no Rio de Janeiro, em 1988. Em 2001, é realizada a retrospectiva Ione Saldanha e a Simplicidade da Cor, no Museu de Arte Contemporânea de Niterói - MAC/Niterói.

Alegrete, RS, 1919 – Rio de Janeiro, RJ, 2001
Nascida em Alegrete, no Rio Grande do Sul, em 1919, Ione Saldanha já na infância passa a interessar-se por artes. Seu interesse se dá ao ver em uma revista a imagem de uma pintura de Matisse. Nesse momento, ela decide que vai ser artista e passa a sonhar com sua mudança para o Rio de Janeiro, capital das artes no Brasil, nesse período.

A mudança para o Rio de Janeiro se dá na década de 1940, em 1948 passa a estudar no ateliê de Pedro Corrêa de Araújo, onde realiza seus primeiros trabalhos. Nesse mesmo ano participa do Salão Nacional de Belas Artes / Divisão Moderna, ganhando uma medalha de bronze por seu trabalho.

Em 1951 viaja para a Europa, lá fica por cinco anos. Primeiro em Paris, onde estuda a técnica de afresco na Academia Julian e posteriormente em Florença, onde também estuda a mesma técnica. Além do período de estudo, esse foi um período de grandes descobertas nos museus da Europa, onde se depara por fim com obras de seu inspirador primeiro, Henri Matisse.
Ainda morando na Europa, participa da Bienal Internacional de São Paulo em 1953 e do Salão Nacional de Arte Moderna no Rio de Janeiro, onde ganha o Prêmio Aquisição em 1954. Neste mesmo ano participa do Salão Preto e Branco do 3o. Salão Nacional de Arte Moderna, no Rio de Janeiro.

De volta ao Brasil em 1956, Ione expõe em uma Individual no MAM de São Paulo e na Petit Galerie no Rio de Janeiro. Em 1957 participa da Mostra “Itinerante Arte Moderna no Brasil” em Buenos Aires e Rosário, na Argentina. Em 1959 faz uma exposição individual no MAM do Rio de Janeiro. Ainda neste ano participa de uma coletiva de artistas brasileiros em Munique, Viena, Utrecht e Amsterdã, Lisboa e Paris, com a Mostra “Arte Brasileira”. Faz parte da mesma exposição novamente em 1960.

De 1961 a 1964 faz várias exposições individuais em Santiago no Chile (1961), Rio de Janeiro (1962), Berna (1964) e Roma (1964).

A partir de 1968 a artista passa a utilizar suportes diversos em seus trabalhos, tais como ripas e bambus, bobinas de madeira para cabos elétricos, entre outros. A mudança de suporte dá uma grande liberdade de expressão à artista que passa a criar não mais pinturas, mas sim objetos pictóricos e conjuntos de objetos até chegar às Instalações.

O interesse que até o momento era por cores e formas, ultrapassa o dimensional e se projeta em ambientes, instalando objetos que lembram ritos e festejos primitivos e populares, onde a tridimensionalidade de sua pintura ganha um “pulsar” através dos novos suportes.

Sua “brasilidade” é inegável, principalmente quando alcança o tridimensional, é através dessa nova poética que a artista expressa suas origens e a origem de seu povo de forma vibrante e colorida.

Sua obra nesse momento é dotada de uma espiritualidade singela, manifestada a partir de ritos primitivos, com imagens geométricas tribais e apesar de sutil cheia de sensualidade em sua origem.

Suas últimas obras datam de 2000, quando a artista já lutava contra um câncer que lhe tirou a vida em 2001. Ela viveu até o fim de sua vida no Rio de Janeiro, cidade que escolheu e amou, até seu último suspiro.


A terrível decisão

A jovem artista chegou, de volta à sua casa, cansada e arrasada. Já havia algum tempo que vinha procurando galeristas que se dispusesse a expor seus quadros, certa de que, com uma boa divulgação, eles encontrassem compradores. Nenhum marchand se interessou pela tarefa.

Manteve, então, contatos com museus, buscando espaço para realizar uma individual e, igualmente, o atendimento foi delicado, mas evasivo, trazendo um desalento ainda maior, acompanhado de frustração e revolta interior, uma justa indignação contra tratamento ignóbil que vinha recebendo.

E, de repente, tomou uma decisão, a mais grave decisão de sua vida, daquelas que envolvem um sacrifício pessoal imenso, quase que uma imolação. Era uma resposta que devia dar, não ao mercado, mas a si própria, recuperando a individualidade e fazendo renascer o amor próprio.

Resoluta e solitária, sem ninguém para testemunhar seu gesto, levou para o quintal de sua casa dezenas e dezenas de quadros que faziam parte de seu acervo, empilhando-os no chão. Depois, embebeu todos eles em combustível e ateou fogo.

Pelo menos as chamas apreciaram, e bastante, seus quadros, devorando-os com avidez e formando altas labaredas. Não precisou muito tempo e tudo estava destruído. No local, restaram apenas cinzas, o resultado final de um longo e bem elaborado trabalho, no qual a artista colocara tanto esforço e tantas esperanças.

Foi um protesto solitário. A imprensa não foi chamada para fazer o registro, e bem que gostaria de fazê-lo, já que os jornais se alimentam de fatos inusitados. Os amigos também não foram comunicados da decisão, senão, por certo, tentariam impedi-la de concretizar o ato insano.

A pintora acabara de cometer um suicídio virtual, no qual, se não consumia o corpo, entregava a própria alma ao sacrifício, uma alma que trasladara para cada um daqueles quadros, agora perdidos para sempre.

Não havia arrependimento. Com a alma lavada e uma sensação de alívio, a pintora voltou para dentro da casa.

Estamos no ano de 1949 e a artista decidida é Ione Saldanha, uma gaúcha de 30 anos, tentando a sorte na cidade do Rio de Janeiro.

Tanto trabalho por nada

Ione Saldanha nasceu em Alegrete, Rio Grande do Sul, em 5 de julho de 1921, destinada a ser uma bem comportada guria provinciana, repetindo a sina de outras tantas mulheres do interior, que atravessam a vida cuidando de filhos e dos afazeres domésticos.

Deveria ser, mas não foi. Um dia, folheando uma revista européia de impressão vulgar, que lhe chegou às mãos não se sabe como, viu uma pintura de Matisse. Era uma reprodução ordinária, em branco e preto, mas a adolescente viu naquelas formas toda a beleza registrada pelo grande mestre francês.

Naquele instante, Ione tomou duas decisões que mudariam sua vida: a primeira, imediata: seria uma pintora; a segunda, que levou mais tempo a concretizar: iria mudar-se para o Rio de Janeiro, a capital das artes no Brasil.

Concretizado o sonho de instalar-se no Rio, procurou, inutilmente, nos museus, as cores que sonhara ver na reprodução branco e preto de Matisse. Os quadros expostos nos museus eram sóbrios, contidos, de tonalidades escuras e nada tinham a ver com o colorido agressivo da pintura moderna.

Em 1940, finalmente, começou a ter aulas com Pedro Correia de Araújo, buscando aprender os segredos da pintura tradicional, para, mais tarde, fixar seus próprios rumos, que não era possível ainda divisar.

Depois, partiu para a Europa, onde ficou por cinco longos anos. Em Paris, tomou contato com o que se fazia de melhor em arte moderna. Já Florença foi para ela o reverso da medalha: lá aprendeu a técnica do afresco, tão utilizado na Renascença.

Ao voltar ao Brasil, trazia, pois, excelente bagagem cultural e artística, estando segura de que encontraria pronto reconhecimento ao seu trabalho.

Ledo engano. Se, desde a década de vinte, a arte moderna vinha se projetando e ganhando espaços, a grande preferência do mercado de arte ainda se voltava para a pintura acadêmica. O assentamento de novas idéias leva sempre muito tempo para ocorrer e a mudança de hábitos leva, às vezes, gerações.

Foi então que, depois de ingentes e inúteis esforços para obter reconhecimento, Ione pôs fim à sua obra, de forma dramática, no incidente a que nos referimos no início.

Entre ripas e bambus

O preceito bíblico de que primeiro é preciso morrer para depois renascer, se cumpriu na jovem pintora.

Livre de qualquer compromisso com a arte convencional, consciente de que, depois de tudo por que passou, nada na vida poderia ser pior, abandonou por completo toda a conceituação estabelecida de arte e buscou seu próprio caminho, único, pessoal e intransferível.

Doravante, nada mais de chassis de madeira e telas de linho. Nada que a aprisionasse a qualquer padrão vigente. Impressionada com a simplicidade da pintura de Volpi, começou a desenhar faixas coloridas sobre ripas, numa alegre combinação de tintas, em que a forma era nada e as cores eram tudo.

Das ripas, passou para o bambu. Eram bambus coloridos, com a mesma descontração das ripas, uma pintura quase infantil pela sua singeleza, mas que ganhava grandiosidade na combinação das cores e pela ocupação irregular dos espaços. Sobre sua arte, escreve Mário Pedrosa (1900-1981), crítico de arte do Diário da Noite, de São Paulo:

«Essas artes, ela as modula, não através de cores tonalizadas, mas numa verdadeira escala de cores que se harmonizam pelos contrastes, e estes ressoam de espaço em espaço, como num ambiente de festa na roça, em que as bandeirinhas de papel são substituídas por essas ripas e vigas, ora ajustadas às paredes, ora pendentes do teto.»

Na exposição da Galeria Bonino, em que participou em 1968, colocando sob os olhos críticos do público toda aquela variedade de hastes verticais coloridas, a recepção ao seu trabalho foi calorosa. Ganhou o prêmio de viagem concedido pelo Jornal do Brasil, e aproveitou para visitar os Estados Unidos.

Atingira por fim o patamar da fama e o reconhecimento, seguindo caminho próprio e alheia aos padrões que a colocavam em uma saia justa, dentro de um figurino que não combinava consigo mesma.

Criatividade infinita

No início dos anos setenta, Ione deparou-se, acidentalmente, com uma pilha de bobinas de madeira, que serviram para acondicionar fios elétricos e que agora, vazias, se destinavam ao lixo.

E o lixo virou arte. Realizando uma individual no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o público foi surpreendido com uma série de bobinas pintadas por ela. As cores, antes restritas a ripas e bambus, agora ganhavam uma área mais para se movimentar.

Se as ripas, espalhadas no espaço ou penduradas, lembravam bandeirinhas de São João, já as bobinas, capazes de se mover de um lado para outro, passaram a simbolizar, para alguns apreciadores, selvagens numa dança tribal. Era a modernidade associando-se ao primitivo, traçando uma linha que unia o saudoso passado ao futuro almejado.

Para ela, já estava distante a fase da pintura em telas. As telas deram lugar à madeira, o óleo foi substituído pelo acrílico. As paredes deixaram de ser o receptáculo natural das pinturas. Elas eram colocadas ao chão nu, ou encostadas às paredes, ou penduradas ao teto.

Agora, todo espaço era válido. Estava quebrada a linha divisória entre a pintura, que transmite uma idéia, e o apreciador, que recebe a mensagem transmitida pela arte. Uma e outro se misturam, fundindo-se em um único elemento, como se ambos fizessem parte da obra de arte.

A solidão por companhia

O reconhecimento do trabalho de Ione Saldanha se fez presente nas inúmeras exposições de que participou e nos vários prêmios que recebeu durante sua trajetória pela carreira artística.

Isolada do convívio social por livre escolha, Ione seguiu pela vida, solitária e refratária a compromissos sociais, ainda que rodeada de amigos, que lhe reconheciam os méritos, mas respeitavam seu direito à privacidade.

Pintou enquanto lhe restavam forças. Seus últimos quadros datam do ano 2000, quando o agravamento de doença - um câncer ósseo nas proximidades do pulmão - a impediu de continuar as atividades.

Esses últimos trabalhos, Ione sequer chegou a expor. A última exposição de que participou deu-se em 1996, no Paço Imperial, no Rio de Janeiro.

Ao fim de uma longa luta contra o mal que a vitimou, por fim encontrou a liberdade absoluta que sempre procurara. Em 25 de janeiro de 2001, Ione Saldanha deixou o mundo dos mortais, encontrando o último repouso no Cemitério São João Batista, no Botafogo, zona Sul do Rio de Janeiro.

Não deixou descendentes. Também não deixou discípulos. A perpetuação de sua memória está garantida pela obra que realizou, inédita no mundo. Alguém até poderá seguir-lhe os passos, mas só a ela pertence a criatividade e a coragem de formular novas e personalíssimas formas para expressar sua arte.

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